7 de out. de 2008



daniel marcolino





Gostaria de falar um pouco com vocês sobre algo delicado mas que, sei, não teria a ousadia de pedir-lhes para que eu fosse escutado em casa ou numa biblioteca, quer dizer, nos instantes consagrados ao estudo ou de maior calmaria. Pode ser mesmo no metrô, a conta gontas, ou naquele ônibus lotado, se sorte tiver, porque você pode pegar uma dessas peruas que circulam por onde não vão os ônibus (e também onde não vão muitas outras coisas, tantas coisas!), voltando para casa ou indo para o trabalho. No último caso, talvez até nos econtremos; de uma forma ou de outra, já me dou por satisfeito. Trata-se de um assunto delicado porque falo de um lugar em que convivo com colegas com os quais compartilho meus anseios e com quem aprendo, cada dia, a viver e a deixar de. Pois bem, a matéria sobre a qual me depararei desta vez para escrever-lhes e a que me tem chamado intensamente a atenção é a que se refere à chegada ou o modo como vejo a chegada paulatina dos professores, no dia a dia, a uma escola pública do Estado de São Paulo para seu exercício funcional, isto é, seu trabalho. Falarei como um deles, inclusive, para que eu não seja condenado ao lugar de condenador, o que, no mínimo, já me faria pagar a praga lançada precipitadamente. Devo adiantar ainda, que as palavras relatadas aqui pretendem-se sombras das angústias e dos prazeres compartilhados (eis minha pouca pretensão) principalmente dados no retângulo que reúne esse escrete de profissionais chamado 'sala dos professores', em que estes vão se amontoando ao se aproximar uma determinada hora de um relógio despótico e sempre pontual acima de nossas cabeças, dentro de nossos corações, cujo ponteiro menor, decisivo, indica gritando que já são sete horas. A manhã apenas aponta e já nos encontramos acordados e de olhos pregados pelo sono interrompido prematuramente; o número 7 não martelaria nossos olhos se estivéssemos de férias ou, no caso, se ele não representasse a fronteira entre dois momentos tão díspares: antes, momento coletivo, vestiário de jogadores, lutadores em seus camarins preparando-se para uma jornada; depois: instante em que esses humanos circulam arrastados por sua consciência profissional por corredores insípidos e vão se estabelecer frente a um grande mural de massa amorfa e inquieta pronta para não jogar o jogo. Eis a parte que cabe aos estudantes, também amontoados e policiados dentro de um outro retângulo. O relógio de que falávamos, implacável e verborrágico, não cansa de instalar-se ensurdecedoramente a dizer isso e aquilo, mandando-nos para os corredores que levam às salas-cela, onde tudo ou nada acontece, pedagogicamente falando. Às vezes, ele até pára; pára. E só depois de muitas orações e súplicas laicas volta a tiquetaquear. Para falar do início propriamente da jornada do professor - esse outro ponteiro do relógio, basta dizer que me lembro de Joseph K. (personagem de O Processo, livro de Franz Kafka) que, ao acordar, antes mesmo de se vestir, já é considerado culpado de um processo que desconhece, e que, na verdade, ele jamais saberá da matéria de que o acusam; tudo acontecia independente dele, que dormia inocentemente. Ao acordar, pois encontra os policiais e um oficial de justiça em seu quarto, tomando seu café e apressando-o para conduzi-lo até a delegacia. Poderíamos continuar falando d'O Processo se nosso objetivo não fosse outro e, a propósito disso, gostaria de interromper o assunto e migrar para outro, inventando algumas perguntas que já me ocorrem no momento, que é estabelecer alguma relação disso de que tratamos e a vida do professor. Aliás, você não percebe ter aí algo semelhante com a escola pública ou a vida dos professores? Enquanto estes dormem o que se estaria consolidando nos 'corações e mentes' das pessoas e deles próprios quanto aos fracassos sucessivos dos mal educados filhos dos tempos modernos? De quem seria a culpa, senão daqueles que os tocam com seus dedos de Midas? O tão esperado ouro (será mesmo tão esperado? Não haveria um interesse ou um grande projeto muito maior de mortização da coisa pública?), e cobrado com um policiamento sistemático, como resultado do dia a dia das escolas cai nas mãos dos professores que são os últimos a saírem, mas que não apagaram a luz.
O professor não aprendeu a transformar qualquer coisa em ouro. Uma pena, pois desse modo teríamos nossos problemas solucionados e teríamos, de quebra, a solução também para a economia. Mas, o que vemos, não é ouro; o que se vê é um metal de brilho triste, mórbido como a vida de um certo professor numa escola de uma certa região de São Paulo. Morbidez que se configura num sentimento bem descrito por uma colega a desabafar outro dia: solidão. Julgo que não seja raro que você, leitor, já tenha intuído em si ou nos colegas tal experimento. Solidão profissional, didática, pedagógica, existencial. Uma relação de aspectos frutos de uma escola em que o vento sopra um assobio rasteiro como num filme de 'Far Oeste', levantando uma poeira que cega. Nesse filme, os mocinhos e vilões morrem nocauteados, porque a vida passa como se cada instante fosse retornar na mesma ordem e intensidade por séculos e séculos, como já provocava Nietsche. E por falar em Nietsche é ele quem nos dá a lição sobre a culpa cristã da qual farei uso para dizer que poderia ter começado (na verdade eu só pensei) dizendo que a relação do professor com seu exercício é a de um cristão diante da vida, pois que ele já a começa em dívida, uma vez que alguém teria sacrificado a sua por ele. Dessa forma, a vida do cristão teria que ser a compensação de tal ato incomparável e, por isso, a relação que se estabelece é de escravidão, pois que o cristão nunca conseguirá pagar tal dívida, a não ser que cometesse o suicídio, mas quanto a isso não seria moeda aceita para pagamento, pois que ele não está autorizado a pagar o que não tem preço. Ouso dizer que assim se sente o professor; dívida para com seu exercício, visto que este é, mais do que qualquer outro, pelo menos ao que pode me ocorrer no momento, diluído, esparso, pois como dar conta de conteúdos expositivos, tendo que falar e apresentar visualmente tal conteúdo, proceder a exercícios de fixação e avaliar tal processo, tornando-o visualizável tanto para si, quanto para os estudantes e coordenação etc., isto é, subjetiva e objetivamente, sendo ainda que todo esse processo começa e se desenvolve em várias salas? Isso para não falar dos diários e um policiamento social de superar a expectativa de qualquer administrador neurótico. Aventamos a palavra suicídio e ela nos ocorre novamente, porque nas condições em que o formato do ensino público se apresenta e apresenta o professor, de forma que atropela o processo quase judicial de condená-lo por crime doloso sem direito ao contraditório, quanto ao fracasso no ensino antes mesmo de ele completar seu sono, o réu não vê saída a não ser a vergonha de ter diante do espelho o sorriso amarelado e a sentir na cerveja que toma um gosto mais amargo do que o dia anterior. Assim, o professor, que tem apenas duas horas semanais (mal) remuneradas para pesquisa, sente que fracassa, sente-se em dívida com a escola cristã, com seus coordenadores e diretores que dão sua vida pelo coletivo cristão, escravizando-os e ameaçando-os quando estes ousam distanciar-se do éden, como no filme O Rei Leão, lembram?, em que este quebra a lei do pai (que era a de nunca percorrer por terras para além do reino), desobedecendo à autoridade e colocando em suspensão a garantia da ordem no reino...escolar. Por fim, olhando para um lado e para o outro e não vendo nem um carro nem solução para o processo kafkiano do qual era agente principal sem o saber, atravessa a larga rua em passos lentos, leves, porém firmes, mas da esquina surgia um automóvel silencioso que nosso ilustre personagem nunca notaria.




FIM
fonte da imagem: wikipedia. campo de trigo com corvos, Van Gogh

2 comentários:

Anônimo disse...

você sabe, marcolinovski, - e eu não duvido disso - que olhando assim, ao longe, o quadro do van gogh, até dá pra perceber suas formas e fôrmas. mas se você se aproximar, ficar bem pertinho, verá um amontoado de riscos. linhas que se entrelaçam e que não fazem nenhum sentido de estarem ali, jogados num quadro, uma porção de linhas diferentes, cada uma com sua cor, indo e vindo num vai e vem frenético, insalubre. e de pertinho - e pertinho mesmo, você verá que nem linhas são, é um punhado de tinta endurecida em cima de uma lona branca. às vezes, para apreciar uma obra de arte, temos que ficar longe, olhar de soslaio, sentir e viver. sabe?, claro que sabe.

Aline disse...

Resolvi me tornar sua colega de blog, professor. Gostaria que desse uma olhada e opinasse;
http://maisumalouca.blogspot.com/

Obrigadaaa!
E acredite, essa sensação que você descreveu não atinge apenas professores, mas também diversos alunos massacrados pelo sistema publico de ensino.