13 de jul. de 2008

UMA ATIVIDADE SAGRADA



daniel marcolino


Igreja de Auvers, de Van Gogh

Hoje é sábado ou domingo ou mesmo um desses feriados santos em uma cidade que respira santos como esta de Juazeiro do Norte, e eu procuro uma atividade, qualquer coisa nem tão santa para passá-lo melhor. Sim, o dia, seja ele qual for....passá-lo melhor, eis minha pouca missão. Devo dizer que sou amante de coisas de pouco movimento, coisas que, de alguma forma, se deixem ser captadas, estudadas, lidas, apreciadas. É, devo explicar isso, sei. Estou tentando dizer que gosto de pintura, escultura ou mesmo de...sobretudo, talvez, CINEMA. Pois é, disse, e se lhe parece que digo com certo pudor, é verdade, faço-o, digo com hesitante pudor. Pudor que nasce talvez de desautorizada vontade (preferiria dizer ‘inautorizada’, mas você seria o primeiro a me censurar, aliás, preferiria porque ‘in’ parece me servir melhor do que ‘des’) de vivenciar algo talvez pouco merecedor da alcunha ‘sagrado’ em terra tão casta e, santa, por extensão, como dizem e acreditam os que por aqui vivem. Pois é, saí (e não sei se efetivamente fi-lo ou se isso realmente interessa para este relato) em busca de imagens estáticas nessa cidade chamada Juazeiro, imagens de filmes que guardo em minha memória de subversivo, obsessivo, alucinado, que vive a se imaginar em uma sala escura esperando pelos letreiros escritos numa língua que não entende nada, com diagramas (ou seriam hieróglifos?) que lhe dizem tanto, talvez por não lhe dizerem nada, ao contrário dos produtos visuais que têm tanta pretensão em estar dizendo e dizendo, informando e conformando...pois é, falava que saí em busca (caça?) dessas imagens estáticas que congelam o tempo, às vezes, em preto e branco, e que conferem a ele, por isso, existência, sim, existência humana. Percorro labirintos que me conduzem a desesperados olhares de olhos esbugalhados nessa romaria de almas, caminhadas em meio a pessoas que sempre estarão na via contrária. As ruas desta cidade são todas de via dupla. Penso em enlouquecer e me virar e, como o personagem de Sabino, o Grande Mentecapto, ou Dodeskaden, de Kurosawa, ou aquele magnífico rapaz ingênuo (ingênuo?) de Milagre em Milão, de De Sica, ou Tobias, meu deus, Tobias!, ou El Memorioso, de Borges, ou Bartleby, de Melville, ou do formidável vagabundo Juju, de René Clair, do jeito deles me virar de lado e lascar um olhar desses que só "os amantes se dão" e, às vezes, os parentes, ainda que serpentes, porque se conhecem na calma do dia a dia e se acalmam quando se encontram numa multidão como esta. Mas não consigo, nunca conseguirei, NUNCA, meus irmãos, nunca, seja em minúsculas ou, assim, meio gArRAfAiS, nunca conseguirei me acalmar e lhes lançar o olhar despretensioso que a vida nos exige, porque estou me alucinando com essas imagens, luzes, e engulo-lhes com meus olhos também esbugalhados de besta estrangeiro, de sotaque asséptico, e de palavras em ponta de nariz, sim, meu nariz fala aos ventos, e uma borboleta asifica belamente a minha tarde...e me salva; acho que deveria levá-la para casa.


Vou fazer parágrafo só para descansar sua vista de leitor de jornais, mas quanto à história, terei que continuá-la da mesma forma, até porque ela segue engravidando-se!...e filho de peixe...Pois me encontro andando, andando, andando atrás (aliás, sempre atrás) das imagens que marcaram toda uma vida e vejo rostos em câmara lenta, e a lente pela qual busco ver aquelas imagens encontra-se cega, riscada em qualquer empalidecida sala de qualquer pátio empalidecido de estacionamento que já fora sala escura com lentes que viam tanto!, tantas imagens que procuro...meu deus, que procuro...e lá, pelo menos os cartazes dessas imagens e, quem sabe, algum projetor velho, que ainda funcione, pelo qual veja alguma coisa, alguma imagem, uma que seja, qualquer que seja...mas, essas salas estão fechadas, talvez por hoje ser sábado, só isso, ou domingo ou um desses feriados desses feriados santos, os senhores são santos em uma cidade que respira santo e eu procurando uma atividade nem tão santa para passá-lo...mas esse feriado que não acaba nunca!
Fonte da imagem: wikipedia

PARA QUE O CINEMA


daniel marcolino


A existência de uma coisa apontada por uma convenção lingüística, isto é, um nome, torna-a presente para uma comunidade provida de linguagem como torna existente para uma criança o objeto que lhe salta à frente. Eis, pois, uma primeira e imediata e involuntária função da linguagem: fazer existir para ‘nós’. Existir como que, de repente, percebe e diz “ei-lo”. Constatamos, assim, o algo, a existência, por assim dizer, digo melhor, o existir.
Assim, igualamos, como fruto de nossa mais tenra vaidade intelectual, e inutilmente, talvez, o cinema a qualquer outra...coisa. O lucro que tiramos daí é a consciência de sua (nossa) existência. Mas...para quê? Para que, uma vez nomeado o cinema, atribuamos-lhe (ou é ele que se autonomiza incorporando funções?) funções utilizadas para o exercício de um prazer catalisador de poder, capaz de sublimar, por exemplo, nossas mais antagônicas fraquezas, como não voar, escutar, chorar etc. ou só como prazer estético mesmo (à Kant)?
Aliás, como defender o cinema em sua constituição ou função social? A quem serve o cinema? Esta última pergunta, quero deixar claro, não pode ser feita àquele filme ou a este. Deve ser feita ao Cinema. Assim como o teatro o cinema foi adorado ou amado em sua constituição, do jeito ‘que ele é’, podemos dizer. Confundindo-se com o teatro, às vezes, ressaltando a palavra ou a imagem (pois no teatro há também a valoralização do gesto, do cenário etc.) O cinema foi colocando cada tijolo em seu devido lugar. E outras casinhas logo foram aparecendo, indicando que há vários cinemas compondo um grande vilarejo, talvez uma grande metrópole, espelhando sua pluralidade como ontologia, onde todos são como que uma família. Isso, uma grande família, como todas, onde ali constam os ícones criados pelas mais diversas fontes de nossa formação física e mental. Estou falando dos elementos de sua composição: a prostituta, o veado, o paizão, o poeta, o acadêmico, o ignorante, o analfabeto.
Que viva, pois, o cinema para contar ou ‘apenas’ exibir essa história! Ainda que isso seja inútil dizer, assim, ‘viva’ (ou ‘‘Salve o Cinema’?!’. Ele sempre vai estar aí e não precisa que digamos vivas. Que vivamos nós, pois, para podermos comer a prostituta e o veado com a grande desculpa de ser tudo isso arte e assim não enlouquecermos nossos doces lares, brindando com os resquícios do prazer pro-i-bi-do na beirada dos copos).
Fonte da imagem: microsoft.

A Palavra Invisível - Sobre Cinema


daniel marcolino

O composto semântico em que se constitui o ‘texto fílmico’ é freqüentemente reduzido a um locus onde toda uma tradição fincada na palavra, representada e referendada principalmente pela literatura, não só o destrói em sua autonomia, adquirida no decorrer do século XX, mas o impossibilita como coerência textual, porque não temporaliza a imagem, mas, ao contrário, escraviza-a, conferindo-lhe um outro corpus a ela estranho. Trata-se da colonização da imagem, ou em outros termos, de filmes gritantemente literalizados.
Não devemos nos deixar levar por uma compreensão equivocada construída a partir do termo texto (tessitura, tecido) e pensar que aí cabem, pois, todas as possibilidades de expressão presentes nas mais variadas artes, uma vez que se de tecido entende-se uma articulação adquirida a partir de vários pontos, no texto fílmico caberiam também várias outras formas de expressão artística. Podemos, sim, pensar o tecido com seus vários pontos e entrelaçamentos pretendendo tornar-se um todo que se apresenta como tal, isto é, coesa e coerentemente do ponto de vista estético e lingüístico. No caso do texto fílmico não podemos prescindir da ‘palavra invisível’. Ela é chamada a se articular, ou melhor, a fundir-se à imagem que a solicita em desespero em momentos inadiáveis a compor com ela um amálgama homogêneo, acariciando, assim, o cinema em suas exigências mais ortodoxamente gramaticais.
A palavra invisível, pois é ‘aceita’ no texto fílmico por sua humilde discrição, o que não significa que ela deva se envergonhar e se ‘esconder’, mas deve estar ali quando for conveniente, não só ‘auxiliando’ a imagem, mas sintetizando junto com ela e com os outros elementos fílmicos (ruído, trilha sonora, silêncios, fala narrada, texto escrito etc.) o todo fílmico. Contudo, há filmes que se entendem servidores radicais da comunicação, como se o cinema fosse uma língua, a tagarelar uma história. Ora, o cinema, como arte, é antes expressão.
Estamos tratando de palavra invisível aquela palavra que não chama a atenção para si; ela não brilha como néon nem fere os ouvidos, mas presentefica-se despercebidamente mesmo estando ali no pleno uso de suas funções, permitindo que a leitura imagética seja feita sem maiores transtornos.
O que estamos tentando assegurar, por fim, é que a imagem é intraduzível em palavras. E se num filme ve-mo-las aos montes, desconfiemos, e procuremos se ali as imagens não estarão sendo anacronicamente escravizadas por belas, mas inaptas e indesejáveis palavras visíveis demais.

A Curva

daniel marcolino

A estrada sinuosa seguia em silêncio produzindo perigos num terrível desenlaço de possibilidades macabras. A inclinação nas curvas entortava meus pensamentos para acidentes que sempre se desenhavam a cada ultrapassagem. Parece que ao viajar é que percebemos mais fortemente a sensação da rápida fluidez da vida, de que tudo vai ficando para trás, restando poucas esperanças de que um dia esse tudo nos encontre numa dessas cidadezinhas pelas quais passamos pelo caminho. Parece mesmo inevitável ser desviado pelos perigos. A cada curva conquistada sentia que me ia distanciando daquilo que procurava.
Assim, me perdia nesses pensamentos quando fui acometido pela sensação mais estranha que talvez eu possa dar conta na memória.
Eis a matéria do que desejo e passo agora a expor. O garoto com o peso na cabeça carregava-se naquelas curvas, sozinho, com a protuberância ventral gritando à frente do que pode ser seu maior elemento de identidade, já que é o que nos chama de imediato a atenção. Já que foi o que me chamou de imediato a atenção. A barriga de umbigo saliente me arrebata miseravelmente. Se é que posso roubar dele esse termo tão dele e que só lhe identifica se dito por mim. Aquela curva; lá naquela curva havia aquele miserável menino. Por que não deixei que ele passasse como uma sombra entre tantas outras que lhe antecederam? Os pneus silenciosos contornam uniformemente aquele montinho de panos sobre aquele corpinho de infindas fragilidades. Avanço um pouco mais e já me deparo com seu magro perfil. Ele contorce-se levemente para acompanhar minha passagem e acontece. Sim, acontece: nossos olhos se cruzam. Estatelo-me dentro de seus olhos de umbigo. Impossível fingir que ele não me seguiria por toda a extensão daquela estrada. Impossível tapar os ouvidos aos gritos daqueles olhos. Como um papel fotográfico, aquelas sombras de luzes ofuscantes ficariam para sempre impressas na minha retina verde de sombras pacíficas das paisagens que encontrara. Esqueço-o por infinitos centésimos de segundo e na tomada seguinte ele já recua no plano do retrovisor. Talvez eu devesse ter parado e abraçado-o absolutamente. Quem sabe depois de copiosas lágrimas eu devesse salvar seu dia com algum trocado! Ele certamente não riria, não manifestaria a alegria que justificaria o meu alívio absoluto. Guardaria-a para a cumplicidade visual dos seus. Aquele menino não tem o direito de sair por aí desestruturando estradas, vidas. Ele é só um menino miserável de pernas que o conduzem miseravelmente!, procuro pensar. Nem das estradas ele faz uso. Sempre a andar pelos acostamentos, sempre ficando para trás. Sempre encostado. Meu Deus!!! Sempre encostado. Aquele menino nunca sairá do lugar, por mais que suas perninhas avancem pacientemente uma após a outra, ele sempre sumirá nos retrovisores das estradas e seu grito será mudo como um mandacaru perdido naquele mato de vidas parcamente verdes e ofegantes. Envergonho-me do que vou dizer, talvez pelo pretensioso arrombo estético que nos faz projetar-nos para o objeto só transitoriamente, e que depois da experiência, recuamos tão logo dele não mais necessitamos. Mas, ousarei dizer, mesmo que eu sofra, sim, ousarei dizer que aquele miserável menino sou eu, miseravelmente...Não tem mais retorno no que disse; a estrada é uma via sem volta e o menino a essa hora estará descansando um pouco antes de prosseguir naquela beira de estrada. Sua respiração de fracos pulmões será ouvida pelos calangos que estarão curiosos a lhe indagar pela espécie a que pertence. Não, o menino não estará descansando, pois ao contrário do que parecem informar seus olhos, ele é resistente como uma estrada e não recuaria em algo que executa harmonicamente todos os dias como o maestro de noventas sinfonias. Talvez aqueles buracos dos acostamentos tenham mesmo surgido de tantas vezes que por ali passara com pés de determinados passos. Pela última vez: o menino é forte e desconhece perigos! Ou ainda talvez sua tarefa não seja essencial ao sustento da família. Basta que um amiguinho lhe direcione um assobio para que ele abra um largo sorriso, desses de crianças, e vá quase correndo em sua direção para juntos desbravarem todos os calangos e mandacarus da região. Não, tudo isso não passa de engano, de uma mise-en-cène. Depois que ele sumiu de meu retrovisor a câmera foi desligada e todos ficaram felizes com sua performance: “Aquele giro no seu próprio corpo para acompanhar a passagem do carro foi genial!”. O menino se livra do peso que me fez inferir seu sofrimento e recebe um desses copos de líquidos preciosos que se dão para os atores e que nosso paladar de sóis saberia tão bem apreciar. O menino é uma imagem perdida que nunca mais recuperarei.

O Cinema segundo Fausto

daniel marcolino

Devemos entender bem o que segue sobre o cinema. Não é divertimento! Lançamo-nos num turbilhão, onde há dor e prazer, ódio misto de amor, agradável momento. Lá onde nossa alma se cura da ânsia de saber, não devendo se fechar às desgraças futuras. E o que é distribuído aos que habitam no mundo devemos agora gozar nas entranhas impuras. Ali, alcançamos com a alma o mais alto e profundo, acumulamos prazeres, dores, desventuras. E nesse turbilhão arrojamos então nosso ser, de vez, a naufragar, e com ele morrer

12 de jul. de 2008

Atividades uterinas




daniel marcolino


Quase um ano já se passou e não podemos dizer sem incorrer em incoerências que o vivemos com os rompantes que usamos nas partilhas festivas de fim de ano. Sim, este chegará. Pois uma das características do tempo é a de nos submeter...implacavelmente, fazendo-nos "objetos abjetos" dele. Só a muito custo, aprendendo com as crianças, como disse certo Quintana, é que poderíamos resisti a ele. O que estou tentando dizer, e talvez já devesse tê-lo feito logo de cara, é que poderíamos tê-lo vivido com mais intensidade menos burocrática. Na verdade ainda, deveria logo ter explicado que falo como professor de uma escola estadual para que as coisas comecem a ser compreendidas. Tento também falar da burocracia como elemento penetrante de nossas atividades cotidianas, no útero de uma escola. Útero nos lembra ou nos remete a um ambiente acolhedor, instância de perfeição ambiental preparatória para o nascimento ou expulsão processual de um ser que, por assim dizer, ao seu tempo (e em tempo), nasce. Contudo, nesse útero escolar prepara-se ou se desenvolvem fetos em meio a esse elemento já anteriormente citado, qual seja, a burocracia, que toma conta de todos os processos internos, colonizando as várias formas de desenvolvimento (afetiva, cognitiva, social etc.) e imprime sua cadeia rígida de inter-relações, orientando (determinando?) quase cegamente bons funcionários estatais que com boas intenções nascem e se desenvolvem na segurança de corredores sagradamente burocratizados. Estabelecendo-nos nessa esfera da vida (sim, pois que ela se afirma como um ethos universal) anulamos qualquer outra maneira de lidar com os problemas que não seja a da via seqüencial e lógica das soluções numéricas, sustentadas por relatórios tautológicos e pueris (?) que em seu propósito só encontramos a secura de classificações inúteis e a da sustentação e manutenção do preconceito social reproduzidos na escola. Trata-se do que Bourdieu fala sobre a conversão das desigualdades sociais em desigualdades escolares. Assim, como colegas estatais kafkianos, seguimos nos transformando em besouros por uma máquina extrema e pesadamente presente (mas, ao que parece, pouco percebida pelos colegas) no ambiente escolar manifesta e representada por profissionais competentes que reproduzem tal perfomance seja em sala de aula, seja em coordenações ou em direções de escolas, supervisões que há muito parecem ter esquecido de se tratarem por gente (pois como em 1984, todos somos números, aliás, como em Pitágoras - ?) e não agentes de uma singular presença estatal perversa, porque defensora de uma não sei que de força oculta que responde a interesses elitistas e que nos debatemos inutilmente todos os dias com inadequações procedimentais. Fico pensando como tantos professores sustentam seus sonhos particulares, compram o pão nas padarias da esquina, viajam, presenteiam seus pais, maridos e esposas, tudo através dos alunos apequenados e impotentes que o Estado gera sistematicamente durante anos e anos nesses sistemas prisionais escolares dos quais somos um pouco, cada um, o carrasco da vez. Sim, como professores somos os atores principais desse teatro hiper-realista que assopram a ferida cujo estado (com minúscula mesmo) cada vez mais se agrava e cujas cabeças rolam nos chãos de corredores inócuos. Ao final de cada jornada não cansamos de desejar uns aos outros pornograficamente que tenhamos um bom descanso. A propósito, já que estamos próximos do final do ano podemos desejar e dizer uns aos outros com a consciência anestesiada esse desejo de descanso de ventre, de morte, enfim, de nada. Então, “Que descansemos...” em paz!.

Suicídio

daniel marcolino


A aproximação entre diferentes linguagens, além de exercitar a imaginação, excita-nos e encanta já pela riqueza comparativa que tal exercício por si só pode nos proporcionar. Como se o produto dessa ação estética não fosse suficiente, o exercício comparativo pode ainda nos render entendimentos mais profundos da vida, mesmo (mesmo?) que a relação com o objeto se dê por um viés estético-contemplativo sem se estender a dimensões políticas. É o caso do cinema com a literatura.
Dostoiévski, por exemplo, em seu maravilhoso Crime, apresenta uma dessas situações literário-cinematográficas, quando coloca frente a frente Marmieládov (o bêbado, pai de Sônia) e o jovem estudante Raskólnikov. Aquele tece um longo e nauseático discurso – próprio do estado do personagem – que é acompanhado por este. Em certo momento, emocionado pela força do texto que pronuncia, Marmieládov diz ter se casado de novo por sua esposa não ter para onde ir.
Podemos aqui imaginar cinematograficamente essa seqüência, dentre tantas formas, sugerindo que ela poderia se alternar num plano médio de ambos os personagens em perfil ou em plano e contra-plano, ou ainda a câmera fixa no rosto do estudante. Ou ainda, a câmera poderia deslizar horizontalmente pelo fato enunciado, exibindo, de um lado – o emissor do discurso, falando, – até o outro – o ouvinte, escutando. Mas, Raskónikov não manifesta nada, e é possível ainda que nada de excepcional tenha sido captado por ele, pois o texto não nos informa, ao contrário do que é comum em superautores de romances dominarem todo o ambiente de que se valem seus personagens. Nem o Leitor parece captar algo, que, só é percebido quando o texto é repetido mais adiante fazendo aquele participar da força de desabrigamento dos personagens de Dostoiévski. Nossa loucura que se obriga a acompanhar caminhos tão longos de tantas páginas, banha-se como que de uma áurea alucinada. Dostoiévski não nos permite sentir algo sistemático. Uma perda que seja, uma decepção, tudo são sensações esparsas, informes, sempre impulsionando para outras, e no fundo, a sensação de incompletude. É assim, que Marmieládov ressalta a bomba silenciosa: “Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não se ter mais para onde ir? Não! Isso o senhor ainda não compreende...”. Certamente. E talvez nunca compreenderemos.
Voltando ao exercício da seqüência fílmica, como espectadores sentimos a necessidade de acrescentar à sensação ou situação vivida pelo Personagem Raskónikolv quando Marmieládov repete o que disse tão dramaticamente, mas que nós deixamos passar sem a reação devida à dramaticidade do texto; nós, Leitor e Raskónikolv (personagem). A mudança no rosto do novo Raskónikolv, no filme imaginado por nós, ao ouvir a repetição do discurso em sua parte mais forte, qual seja, “...o que significa não se ter mais para onde ir?”, é perscrutada pela câmera que buscará em panorâmica horizontal o corpo de Raskólnikov, que , como o nosso de Leitor, arregala os olhos indefesos diante de tão dilacerante impacto.
O que o Cinema possibilita a partir desse trecho de Dostoiévski é que tomemos os olhos do estudante (aqui, Leitor/Personagem), conduzindo-os novamente em direção ao fato semântico-perlocucionário. No livro não vimos ou lemos sobre a reação de Raskólnikov, porque Dostoiévski não no-la descreve; na verdade, ele não atribui a Raskónikov tal reação, mas certamente estava ciente da explosão reativa nos seus leitores.
Contudo, no cinema, mais do que na literatura, a reação é exigida pelo texto dramático, pois a participação do Leitor em relação ao livro funciona como o lugar da compreensão lógica e semântica da estória, já que a exegética do livro é menos real do que a do cinema. No cinema - cinema como reprodução da realidade - o plano da perspectiva (tridimensional), é exigida a reação do ouvinte também pela composição do quadro da cena, por quem compõe a cena. Sem ela é como se o espectador pensasse: “O que há de errado com ele, estará dormindo, pensando em outra coisa; por que não reage; será ele indiferente, foi um erro do ator?” (aqui, a indiferença se coloca positiva e não negativamente, como é o caso da literatura, por exemplo, quando em vez de vermos as reações do personagem temos que intuí-las). Isso significa que no cinema, enquanto espectadores, estabelecemos o tempo todo comparações reais triviais com o mundo em que vivemos, isto é, um mundo feito de paredes retas, mesas com quatro pernas etc., de modo que se num filme percebemos uma cadeira com apenas duas pernas, estranharíamos e nos apressaríamos a apontar: “Eis um erro!”.
Diante da assombrosa indagação metalingüística de Marmieládov, pois ele pergunta sobre o sentido do que se diz ao ouvinte, uma vez que se se diz algo é com a pré-convicção de que esse algo será compreendido (É, pois, aí que nos damos conta do distanciamento que nos pomos diante das problemáticas da vida a nós anunciadas a todo instante. Ou esse seria um distanciamento característico da própria literatura, pelo ato de leitura?), pois, de outra forma um e outro não teriam entre si a confiança e estímulo para começar um diálogo, nos perdemos e sofremos sozinhos. Ora, se acentuo algo já dito, e mais que isso, não acredito expressamente na capacidade cognitivo-emocional de meu interlocutor para participar do diálogo sobre um tema em questão, é porque tenho consciência de que o meu ouvinte está aquém da compreensão exigida, seja intelectual, seja imaginativa ou solidária para participar do diálogo. E se sei de antemão que ele não compreenderia o que eu viria a dizer, por que dizer? Assim, não seria possível formar um par lingüístico de discussão argumentativa, uma vez que, um dos elementos do conjunto bipolar da argumentação está aquém do que seria necessário para a situação.
Dar essa ênfase no cinema não significa o equivalente a um punhado de palavras fortes pronunciadas verborragicamente (como em Lavoura Arcaica, de Luis Fernando Carvalho, por exemplo), palavras que se perdem como borboletas que se esvoaçam ao acaso, nem a um ´simples` close up na tentativa de emocionar o espectador, mas à busca do tempo da ação dramática, o que equivale como que à paralisação do próprio movimento. O cinema como fotografia. Significa parar o movimento no cinema, e, além dos resultados daguerreanos, colhermos outros, frutos de uma presença contínua, porque cinema é um futuro que se atualiza numa imagem em movimento, e de um passado, pois que o futuro fora necessariamente engendrado por um passado: uma consolidação lenta e progressiva do movimento na imagem parada, como diz Benjamin. Significa ampliar a imagem/idéia exposta (imagem que no momento nos expõe/compromete mais como espectadores que lhe atribuímos um significado que ela poderia expor sentidos).
Ao sermos indagados pelo sentido (“o que significa não se ter mais para onde ir?”) perdemos o chão, porque ouvir é também construir a fala do falante, e este está perdido. É legitimá-la; é torná-la possível. E a isso nos acostumamos tanto que perdemos a sensibilidade (se é que podemos sugerir uma ´perda` de sensibilidade como se houvesse um reino onde tal qualidade fosse comum, fosse dada, pois parece uma condição paradoxal em que somos lançados, uma vez que como diz Rousseau, quanto mais se usa um termo mais se perde o seu sentido). Perdemos o chão e caímos num abismo sem fundo, e mesmo assim, não temos coragem de nos agarrar às suas paredes para tentar nos salvar. É, pois, o morrer consentido, nem de longe o substantivo, a morte propriamente, que não pode ser desejada, uma vez que não se sabe desse estado, mas o logos, o verbo, o morrer que é a anulação do viver. E daquele sabemos. Ah, como sabemos! Trata-se, pois, do suicídio. A vergonha provocada pela inaptidão da resposta. É Édipo, porque não consegue desamarrar-se; é Antígona, porque precisa anular-se; Aschenbach, porque não possui o acesso ao mundo enigmático de seu desejado ‘interlocutor’; é um Édipo novamente, porque sabe que não poderá suportar a verdade sem implicar na anulação/destruição da (sua – nossa?) vontade de existir.

10 de jul. de 2008

Baudelaire

É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema.Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha. Contanto que vos embriagueis.E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder: É hora de se embriagar!Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas!De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha (Baudelaire).


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1 de jul. de 2008

Quando vão chegando os professores



daniel marcolino


Gostaria de falar um pouco com vocês sobre algo delicado mas que, sei, não teria a ousadia de pedir-lhes para que eu fosse escutado em casa ou numa biblioteca, quer dizer, nos instantes consagrados ao estudo ou de maior calmaria. Pode ser mesmo no metrô, a conta gontas, ou naquele ônibus lotado, se sorte tiver, porque você pode pegar uma dessas peruas que circulam por onde não vão os ônibus (e também onde não vão muitas outras coisas, tantas coisas!), voltando para casa ou indo para o trabalho. No último caso, talvez até nos econtremos; de uma forma ou de outra, já me dou por satisfeito. Trata-se de um assunto delicado porque falo de um lugar em que convivo com colegas com os quais compartilho meus anseios e com quem aprendo, cada dia, a viver e a deixar de.

Pois bem, a matéria sobre a qual me depararei desta vez para escrever-lhes e a que me tem chamado intensamente a atenção é a que se refere à chegada ou o modo como vejo a chegada paulatina dos professores, no dia a dia, a uma escola pública do Estado de São Paulo para seu exercício funcional, isto é, seu trabalho. Falarei como um deles, inclusive, para que eu não seja condenado ao lugar de condenador, o que, no mínimo, já me faria pagar a praga lançada precipitadamente. Devo adiantar ainda, que as palavras relatadas aqui pretendem-se sombras das angústias e dos prazeres compartilhados (eis minha pouca pretensão) principalmente dados no retângulo que reúne esse escrete de profissionais chamado 'sala dos professores', em que estes vão se amontoando ao se aproximar uma determinada hora de um relógio despótico e sempre pontual acima de nossas cabeças, dentro de nossos corações, cujo ponteiro menor, decisivo, indica gritando que já são sete horas. A manhã apenas aponta e já nos encontramos acordados e de olhos pregados pelo sono interrompido prematuramente; o número 7 não martelaria nossos olhos se estivéssemos de férias ou, no caso, se ele não representasse a fronteira entre dois momentos tão díspares: antes, momento coletivo, vestiário de jogadores, lutadores em seus camarins preparando-se para uma jornada; depois: instante em que esses humanos circulam arrastados por sua consciência profissional por corredores insípidos e vão se estabelecer frente a um grande mural de massa amorfa e inquieta pronta para não jogar o jogo. Eis a parte que cabe aos estudantes, também amontoados e policiados dentro de um outro retângulo. O relógio de que falávamos, implacável e verborrágico, não cansa de instalar-se ensurdecedoramente a dizer isso e aquilo, mandando-nos para os corredores que levam às salas-cela, onde tudo ou nada acontece, pedagogicamente falando. Às vezes, ele até pára; pára. E só depois de muitas orações e súplicas laicas volta a tiquetaquear.

Para falar do início propriamente da jornada do professor - esse outro ponteiro do relógio, basta dizer que me lembro de Joseph K. (personagem de O Processo, livro de Franz Kafka) que, ao acordar, antes mesmo de se vestir, já é considerado culpado de um processo que desconhece, e que, na verdade, ele jamais saberá da matéria de que o acusam; tudo acontecia independente dele, que dormia inocentemente. Ao acordar, pois encontra os policiais e um oficial de justiça em seu quarto, tomando seu café e apressando-o para conduzi-lo até a delegacia.

Poderíamos continuar falando d'O Processo se nosso objetivo não fosse outro e, a propósito disso, gostaria de interromper o assunto e migrar para outro, inventando algumas perguntas que já me ocorrem no momento, que é estabelecer alguma relação disso de que tratamos e a vida do professor. Aliás, você não percebe ter aí algo semelhante com a escola pública ou a vida dos professores? Enquanto estes dormem o que se estaria consolidando nos 'corações e mentes' das pessoas e deles próprios quanto aos fracassos sucessivos dos mal educados filhos dos tempos modernos? De quem seria a culpa, senão daqueles que os tocam com seus dedos de Midas? O tão esperado ouro (será mesmo tão esperado? Não haveria um interesse ou um grande projeto muito maior de mortização da coisa pública?), e cobrado com um policiamento sistemático, como resultado do dia a dia das escolas cai nas mãos dos professores que são os últimos a saírem, mas que não apagaram a luz.

O professor não aprendeu a transformar qualquer coisa em ouro. Uma pena, pois desse modo teríamos nossos problemas solucionados e teríamos, de quebra, a solução também para a economia. Mas, o que vemos, não é ouro; o que se vê é um metal de brilho triste, mórbido como a vida de um certo professor numa escola de uma certa região de São Paulo.

Morbidez que se configura num sentimento bem descrito por uma colega a desabafar outro dia: solidão. Julgo que não seja raro que você, leitor, já tenha intuído em si ou nos colegas tal experimento. Solidão profissional, didática, pedagógica, existencial. Uma relação de aspectos frutos de uma escola em que o vento sopra um assobio rasteiro como num filme de 'Far Oeste', levantando uma poeira que cega. Nesse filme, os mocinhos e vilões morrem nocauteados, porque a vida passa como se cada instante fosse retornar na mesma ordem e intensidade por séculos e séculos, como já provocava Nietsche.


E por falar em Nietsche é ele quem nos dá a lição sobre a culpa cristã da qual farei uso para dizer que poderia ter começado (na verdade eu só pensei) dizendo que a relação do professor com seu exercício é a de um cristão diante da vida, pois que ele já a começa em dívida, uma vez que alguém teria sacrificado a sua por ele. Dessa forma, a vida do cristão teria que ser a compensação de tal ato incomparável e, por isso, a relação que se estabelece é de escravidão, pois que o cristão nunca conseguirá pagar tal dívida, a não ser que cometesse o suicídio, mas quanto a isso não seria moeda aceita para pagamento, pois que ele não está autorizado a pagar o que não tem preço. Ouso dizer que assim se sente o professor; dívida para com seu exercício, visto que este é, mais do que qualquer outro, pelo menos ao que pode me ocorrer no momento, diluído, esparso, pois como dar conta de conteúdos expositivos, tendo que falar e apresentar visualmente tal conteúdo, proceder a exercícios de fixação e avaliar tal processo, tornando-o visualizável tanto para si, quanto para os estudantes e coordenação etc., isto é, subjetiva e objetivamente, sendo ainda que todo esse processo começa e se desenvolve em várias salas? Isso para não falar dos diários e um policiamento social de superar a expectativa de qualquer administrador neurótico.

Aventamos a palavra suicídio e ela nos ocorre novamente, porque nas condições em que o formato do ensino público se apresenta e apresenta o professor, de forma que atropela o processo quase judicial de condená-lo por crime doloso sem direito ao contraditório, quanto ao fracasso no ensino antes mesmo de ele completar seu sono, o réu não vê saída a não ser a vergonha de ter diante do espelho o sorriso amarelado e a sentir na cerveja que toma um gosto mais amargo do que o dia anterior. Assim, o professor, que tem apenas duas horas semanais (mal) remuneradas para pesquisa, sente que fracassa, sente-se em dívida com a escola cristã, com seus coordenadores e diretores que dão sua vida pelo coletivo cristão, escravizando-os e ameaçando-os quando estes ousam distanciar-se do éden, como no filme O Rei Leão, lembram?, em que este quebra a lei do pai (que era a de nunca percorrer por terras para além do reino), desobedecendo à autoridade e colocando em suspensão a garantia da ordem no reino...escolar.

Por fim, olhando para um lado e para o outro e não vendo nem um carro nem solução para o processo kafkiano do qual era agente principal sem o saber, atravessa a larga rua em passos lentos, leves, porém firmes, mas da esquina surgia um automóvel silencioso que nosso ilustre personagem nunca notaria.




FIM