13 de jul. de 2008

A Curva

daniel marcolino

A estrada sinuosa seguia em silêncio produzindo perigos num terrível desenlaço de possibilidades macabras. A inclinação nas curvas entortava meus pensamentos para acidentes que sempre se desenhavam a cada ultrapassagem. Parece que ao viajar é que percebemos mais fortemente a sensação da rápida fluidez da vida, de que tudo vai ficando para trás, restando poucas esperanças de que um dia esse tudo nos encontre numa dessas cidadezinhas pelas quais passamos pelo caminho. Parece mesmo inevitável ser desviado pelos perigos. A cada curva conquistada sentia que me ia distanciando daquilo que procurava.
Assim, me perdia nesses pensamentos quando fui acometido pela sensação mais estranha que talvez eu possa dar conta na memória.
Eis a matéria do que desejo e passo agora a expor. O garoto com o peso na cabeça carregava-se naquelas curvas, sozinho, com a protuberância ventral gritando à frente do que pode ser seu maior elemento de identidade, já que é o que nos chama de imediato a atenção. Já que foi o que me chamou de imediato a atenção. A barriga de umbigo saliente me arrebata miseravelmente. Se é que posso roubar dele esse termo tão dele e que só lhe identifica se dito por mim. Aquela curva; lá naquela curva havia aquele miserável menino. Por que não deixei que ele passasse como uma sombra entre tantas outras que lhe antecederam? Os pneus silenciosos contornam uniformemente aquele montinho de panos sobre aquele corpinho de infindas fragilidades. Avanço um pouco mais e já me deparo com seu magro perfil. Ele contorce-se levemente para acompanhar minha passagem e acontece. Sim, acontece: nossos olhos se cruzam. Estatelo-me dentro de seus olhos de umbigo. Impossível fingir que ele não me seguiria por toda a extensão daquela estrada. Impossível tapar os ouvidos aos gritos daqueles olhos. Como um papel fotográfico, aquelas sombras de luzes ofuscantes ficariam para sempre impressas na minha retina verde de sombras pacíficas das paisagens que encontrara. Esqueço-o por infinitos centésimos de segundo e na tomada seguinte ele já recua no plano do retrovisor. Talvez eu devesse ter parado e abraçado-o absolutamente. Quem sabe depois de copiosas lágrimas eu devesse salvar seu dia com algum trocado! Ele certamente não riria, não manifestaria a alegria que justificaria o meu alívio absoluto. Guardaria-a para a cumplicidade visual dos seus. Aquele menino não tem o direito de sair por aí desestruturando estradas, vidas. Ele é só um menino miserável de pernas que o conduzem miseravelmente!, procuro pensar. Nem das estradas ele faz uso. Sempre a andar pelos acostamentos, sempre ficando para trás. Sempre encostado. Meu Deus!!! Sempre encostado. Aquele menino nunca sairá do lugar, por mais que suas perninhas avancem pacientemente uma após a outra, ele sempre sumirá nos retrovisores das estradas e seu grito será mudo como um mandacaru perdido naquele mato de vidas parcamente verdes e ofegantes. Envergonho-me do que vou dizer, talvez pelo pretensioso arrombo estético que nos faz projetar-nos para o objeto só transitoriamente, e que depois da experiência, recuamos tão logo dele não mais necessitamos. Mas, ousarei dizer, mesmo que eu sofra, sim, ousarei dizer que aquele miserável menino sou eu, miseravelmente...Não tem mais retorno no que disse; a estrada é uma via sem volta e o menino a essa hora estará descansando um pouco antes de prosseguir naquela beira de estrada. Sua respiração de fracos pulmões será ouvida pelos calangos que estarão curiosos a lhe indagar pela espécie a que pertence. Não, o menino não estará descansando, pois ao contrário do que parecem informar seus olhos, ele é resistente como uma estrada e não recuaria em algo que executa harmonicamente todos os dias como o maestro de noventas sinfonias. Talvez aqueles buracos dos acostamentos tenham mesmo surgido de tantas vezes que por ali passara com pés de determinados passos. Pela última vez: o menino é forte e desconhece perigos! Ou ainda talvez sua tarefa não seja essencial ao sustento da família. Basta que um amiguinho lhe direcione um assobio para que ele abra um largo sorriso, desses de crianças, e vá quase correndo em sua direção para juntos desbravarem todos os calangos e mandacarus da região. Não, tudo isso não passa de engano, de uma mise-en-cène. Depois que ele sumiu de meu retrovisor a câmera foi desligada e todos ficaram felizes com sua performance: “Aquele giro no seu próprio corpo para acompanhar a passagem do carro foi genial!”. O menino se livra do peso que me fez inferir seu sofrimento e recebe um desses copos de líquidos preciosos que se dão para os atores e que nosso paladar de sóis saberia tão bem apreciar. O menino é uma imagem perdida que nunca mais recuperarei.

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