12 de jul. de 2008

Atividades uterinas




daniel marcolino


Quase um ano já se passou e não podemos dizer sem incorrer em incoerências que o vivemos com os rompantes que usamos nas partilhas festivas de fim de ano. Sim, este chegará. Pois uma das características do tempo é a de nos submeter...implacavelmente, fazendo-nos "objetos abjetos" dele. Só a muito custo, aprendendo com as crianças, como disse certo Quintana, é que poderíamos resisti a ele. O que estou tentando dizer, e talvez já devesse tê-lo feito logo de cara, é que poderíamos tê-lo vivido com mais intensidade menos burocrática. Na verdade ainda, deveria logo ter explicado que falo como professor de uma escola estadual para que as coisas comecem a ser compreendidas. Tento também falar da burocracia como elemento penetrante de nossas atividades cotidianas, no útero de uma escola. Útero nos lembra ou nos remete a um ambiente acolhedor, instância de perfeição ambiental preparatória para o nascimento ou expulsão processual de um ser que, por assim dizer, ao seu tempo (e em tempo), nasce. Contudo, nesse útero escolar prepara-se ou se desenvolvem fetos em meio a esse elemento já anteriormente citado, qual seja, a burocracia, que toma conta de todos os processos internos, colonizando as várias formas de desenvolvimento (afetiva, cognitiva, social etc.) e imprime sua cadeia rígida de inter-relações, orientando (determinando?) quase cegamente bons funcionários estatais que com boas intenções nascem e se desenvolvem na segurança de corredores sagradamente burocratizados. Estabelecendo-nos nessa esfera da vida (sim, pois que ela se afirma como um ethos universal) anulamos qualquer outra maneira de lidar com os problemas que não seja a da via seqüencial e lógica das soluções numéricas, sustentadas por relatórios tautológicos e pueris (?) que em seu propósito só encontramos a secura de classificações inúteis e a da sustentação e manutenção do preconceito social reproduzidos na escola. Trata-se do que Bourdieu fala sobre a conversão das desigualdades sociais em desigualdades escolares. Assim, como colegas estatais kafkianos, seguimos nos transformando em besouros por uma máquina extrema e pesadamente presente (mas, ao que parece, pouco percebida pelos colegas) no ambiente escolar manifesta e representada por profissionais competentes que reproduzem tal perfomance seja em sala de aula, seja em coordenações ou em direções de escolas, supervisões que há muito parecem ter esquecido de se tratarem por gente (pois como em 1984, todos somos números, aliás, como em Pitágoras - ?) e não agentes de uma singular presença estatal perversa, porque defensora de uma não sei que de força oculta que responde a interesses elitistas e que nos debatemos inutilmente todos os dias com inadequações procedimentais. Fico pensando como tantos professores sustentam seus sonhos particulares, compram o pão nas padarias da esquina, viajam, presenteiam seus pais, maridos e esposas, tudo através dos alunos apequenados e impotentes que o Estado gera sistematicamente durante anos e anos nesses sistemas prisionais escolares dos quais somos um pouco, cada um, o carrasco da vez. Sim, como professores somos os atores principais desse teatro hiper-realista que assopram a ferida cujo estado (com minúscula mesmo) cada vez mais se agrava e cujas cabeças rolam nos chãos de corredores inócuos. Ao final de cada jornada não cansamos de desejar uns aos outros pornograficamente que tenhamos um bom descanso. A propósito, já que estamos próximos do final do ano podemos desejar e dizer uns aos outros com a consciência anestesiada esse desejo de descanso de ventre, de morte, enfim, de nada. Então, “Que descansemos...” em paz!.

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