12 de jul. de 2008

Suicídio

daniel marcolino


A aproximação entre diferentes linguagens, além de exercitar a imaginação, excita-nos e encanta já pela riqueza comparativa que tal exercício por si só pode nos proporcionar. Como se o produto dessa ação estética não fosse suficiente, o exercício comparativo pode ainda nos render entendimentos mais profundos da vida, mesmo (mesmo?) que a relação com o objeto se dê por um viés estético-contemplativo sem se estender a dimensões políticas. É o caso do cinema com a literatura.
Dostoiévski, por exemplo, em seu maravilhoso Crime, apresenta uma dessas situações literário-cinematográficas, quando coloca frente a frente Marmieládov (o bêbado, pai de Sônia) e o jovem estudante Raskólnikov. Aquele tece um longo e nauseático discurso – próprio do estado do personagem – que é acompanhado por este. Em certo momento, emocionado pela força do texto que pronuncia, Marmieládov diz ter se casado de novo por sua esposa não ter para onde ir.
Podemos aqui imaginar cinematograficamente essa seqüência, dentre tantas formas, sugerindo que ela poderia se alternar num plano médio de ambos os personagens em perfil ou em plano e contra-plano, ou ainda a câmera fixa no rosto do estudante. Ou ainda, a câmera poderia deslizar horizontalmente pelo fato enunciado, exibindo, de um lado – o emissor do discurso, falando, – até o outro – o ouvinte, escutando. Mas, Raskónikov não manifesta nada, e é possível ainda que nada de excepcional tenha sido captado por ele, pois o texto não nos informa, ao contrário do que é comum em superautores de romances dominarem todo o ambiente de que se valem seus personagens. Nem o Leitor parece captar algo, que, só é percebido quando o texto é repetido mais adiante fazendo aquele participar da força de desabrigamento dos personagens de Dostoiévski. Nossa loucura que se obriga a acompanhar caminhos tão longos de tantas páginas, banha-se como que de uma áurea alucinada. Dostoiévski não nos permite sentir algo sistemático. Uma perda que seja, uma decepção, tudo são sensações esparsas, informes, sempre impulsionando para outras, e no fundo, a sensação de incompletude. É assim, que Marmieládov ressalta a bomba silenciosa: “Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não se ter mais para onde ir? Não! Isso o senhor ainda não compreende...”. Certamente. E talvez nunca compreenderemos.
Voltando ao exercício da seqüência fílmica, como espectadores sentimos a necessidade de acrescentar à sensação ou situação vivida pelo Personagem Raskónikolv quando Marmieládov repete o que disse tão dramaticamente, mas que nós deixamos passar sem a reação devida à dramaticidade do texto; nós, Leitor e Raskónikolv (personagem). A mudança no rosto do novo Raskónikolv, no filme imaginado por nós, ao ouvir a repetição do discurso em sua parte mais forte, qual seja, “...o que significa não se ter mais para onde ir?”, é perscrutada pela câmera que buscará em panorâmica horizontal o corpo de Raskólnikov, que , como o nosso de Leitor, arregala os olhos indefesos diante de tão dilacerante impacto.
O que o Cinema possibilita a partir desse trecho de Dostoiévski é que tomemos os olhos do estudante (aqui, Leitor/Personagem), conduzindo-os novamente em direção ao fato semântico-perlocucionário. No livro não vimos ou lemos sobre a reação de Raskólnikov, porque Dostoiévski não no-la descreve; na verdade, ele não atribui a Raskónikov tal reação, mas certamente estava ciente da explosão reativa nos seus leitores.
Contudo, no cinema, mais do que na literatura, a reação é exigida pelo texto dramático, pois a participação do Leitor em relação ao livro funciona como o lugar da compreensão lógica e semântica da estória, já que a exegética do livro é menos real do que a do cinema. No cinema - cinema como reprodução da realidade - o plano da perspectiva (tridimensional), é exigida a reação do ouvinte também pela composição do quadro da cena, por quem compõe a cena. Sem ela é como se o espectador pensasse: “O que há de errado com ele, estará dormindo, pensando em outra coisa; por que não reage; será ele indiferente, foi um erro do ator?” (aqui, a indiferença se coloca positiva e não negativamente, como é o caso da literatura, por exemplo, quando em vez de vermos as reações do personagem temos que intuí-las). Isso significa que no cinema, enquanto espectadores, estabelecemos o tempo todo comparações reais triviais com o mundo em que vivemos, isto é, um mundo feito de paredes retas, mesas com quatro pernas etc., de modo que se num filme percebemos uma cadeira com apenas duas pernas, estranharíamos e nos apressaríamos a apontar: “Eis um erro!”.
Diante da assombrosa indagação metalingüística de Marmieládov, pois ele pergunta sobre o sentido do que se diz ao ouvinte, uma vez que se se diz algo é com a pré-convicção de que esse algo será compreendido (É, pois, aí que nos damos conta do distanciamento que nos pomos diante das problemáticas da vida a nós anunciadas a todo instante. Ou esse seria um distanciamento característico da própria literatura, pelo ato de leitura?), pois, de outra forma um e outro não teriam entre si a confiança e estímulo para começar um diálogo, nos perdemos e sofremos sozinhos. Ora, se acentuo algo já dito, e mais que isso, não acredito expressamente na capacidade cognitivo-emocional de meu interlocutor para participar do diálogo sobre um tema em questão, é porque tenho consciência de que o meu ouvinte está aquém da compreensão exigida, seja intelectual, seja imaginativa ou solidária para participar do diálogo. E se sei de antemão que ele não compreenderia o que eu viria a dizer, por que dizer? Assim, não seria possível formar um par lingüístico de discussão argumentativa, uma vez que, um dos elementos do conjunto bipolar da argumentação está aquém do que seria necessário para a situação.
Dar essa ênfase no cinema não significa o equivalente a um punhado de palavras fortes pronunciadas verborragicamente (como em Lavoura Arcaica, de Luis Fernando Carvalho, por exemplo), palavras que se perdem como borboletas que se esvoaçam ao acaso, nem a um ´simples` close up na tentativa de emocionar o espectador, mas à busca do tempo da ação dramática, o que equivale como que à paralisação do próprio movimento. O cinema como fotografia. Significa parar o movimento no cinema, e, além dos resultados daguerreanos, colhermos outros, frutos de uma presença contínua, porque cinema é um futuro que se atualiza numa imagem em movimento, e de um passado, pois que o futuro fora necessariamente engendrado por um passado: uma consolidação lenta e progressiva do movimento na imagem parada, como diz Benjamin. Significa ampliar a imagem/idéia exposta (imagem que no momento nos expõe/compromete mais como espectadores que lhe atribuímos um significado que ela poderia expor sentidos).
Ao sermos indagados pelo sentido (“o que significa não se ter mais para onde ir?”) perdemos o chão, porque ouvir é também construir a fala do falante, e este está perdido. É legitimá-la; é torná-la possível. E a isso nos acostumamos tanto que perdemos a sensibilidade (se é que podemos sugerir uma ´perda` de sensibilidade como se houvesse um reino onde tal qualidade fosse comum, fosse dada, pois parece uma condição paradoxal em que somos lançados, uma vez que como diz Rousseau, quanto mais se usa um termo mais se perde o seu sentido). Perdemos o chão e caímos num abismo sem fundo, e mesmo assim, não temos coragem de nos agarrar às suas paredes para tentar nos salvar. É, pois, o morrer consentido, nem de longe o substantivo, a morte propriamente, que não pode ser desejada, uma vez que não se sabe desse estado, mas o logos, o verbo, o morrer que é a anulação do viver. E daquele sabemos. Ah, como sabemos! Trata-se, pois, do suicídio. A vergonha provocada pela inaptidão da resposta. É Édipo, porque não consegue desamarrar-se; é Antígona, porque precisa anular-se; Aschenbach, porque não possui o acesso ao mundo enigmático de seu desejado ‘interlocutor’; é um Édipo novamente, porque sabe que não poderá suportar a verdade sem implicar na anulação/destruição da (sua – nossa?) vontade de existir.

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